Charlie & Nancy
Era apenas um velho. Um velho escritor de dois desconhecidos livros publicados e sua amiga de bar.
Bebiam, ela mais que ele, afinal, ele já não agüentava beber como antigamente.
E sobre o fato de se ver entregando facilmente os pontos, quantas vezes se questionou? E isso o perturbava. Não fazia sentido consumir uma menor quantidade de álcool e assim mesmo a reação ao teor vir rápida, fulminante, tornando sua fala confusa, e os olhos desanexados no ponto que deveriam estar. Repentinamente, ainda sob tal efeito, as pernas tremiam sem controle como se estivessem desnudas numa estação polar. Acabrunhava-o fato já que a bebida se tornara o único e legítimo parâmetro para discernir a sua vida. Para ele esse era o indicativo que as coisas não andavam bem e o que o final se aproximava de forma cruel.
E ali, sentados naquela mesa de bar ela podia perceber tudo que o lacerava apesar de não entendê-lo completamente. Ela entendera que essa espécie auto-reclusão que ele se submetera nada mais era que a fuga de si próprio e das pessoas com quem manteve algum relacionamento um dia. E talvez as dores do seu passado jamais pudessem ser abortadas a tempo de lhes trazerem outras opções. Contudo ela amava estar em sua companhia, fitar seus reluzentes olhos castanhos e a sua barba dispersada em fios negros e brancos que se digladiavam entre si para ver a coloração mais pungente e que predominasse. Naquela noite ele se mantinha mais lacônico que o habitual até que num certo momento desatou:
-Nancy, quero te dar poema. Posso?
-Claro! Adoro tudo que você escreve Charlie – Ela respondeu.
Foi o sinal pra ele se aprumar na cadeira, ajeitar um esgarçado blazer de lã com rótulos de couro nos cotovelos, buscando a inseparável agenda que sempre trazia numa mochila marrom. Passados não mais de 10 minutos ele pigarreou e deixou as primeiras palavras abandonarem a boca:
Ai de mim, Nancy
Se não fossem teus olhos
Refletidos neste belo vestido negro
Que me esconde nacos de tuas grossas coxas
Morenas e de formas perfeitas
Ai de mim, Nancy
Se me furtassem a tua companhia
Se com concreto vedassem meus ouvidos
E não mais me houvesse o som de copos
Colidindo no ar, brindando alguma coisa
Ai de mim se não existisse Saulo, o garçom
Este miserável mercenário de sorriso franco
Serviçal subserviente, inconseqüente até
Que me embebeda há quinze anos,
Sistemática e voluntariamente
Ai de mim Nancy, sem estas doses generosas dum uísque
Vagabundo, criminosamente batizado nas adegas do Paraguai
Ah, Nancy, Nancy! Se não me fosse essa farsa vil
Inevitavelmente eu teria desaparecido
E como escorpião diante da chama, covardemente, morrido
Nancy o ouviu atentamente; ela sabia que não havia grande valor literário ali. Porém amava a visceração com que ele se expunha em seus textos, como se fosse um desses que não tem medo da verdade. Ao fim do poema ela tentou sorrir, mas, não conseguiu; Ela pressentia que alguma coisa tornava o ambiente carregado, a sensação de algo estar fora de lugar, mas, sem que soubesse precisar o que. Contudo, logo após a rouca e ébria leitura do poema, Charlie voltou ao imutável laconismo fixando os olhos no rótulo da cerveja que estava à sua frente; era impossível evitar que a amargura não se fizesse prisioneira nele. Uma amargura triste, nostálgica, lúgubre.
Rapidamente, como se fossem flashes, Nancy repassou cenas da sua convivência com Charlie. Conheceram-se há cinco anos. Nesse tempo, as sextas feiras à noite se tornaram sagradas para ela. Nestes dias, para Nancy não havia filhos, namorado, e nem os compromissos necessários à advogada de sucesso que se tornara. Nada, absolutamente nada a afastava de Charlie naqueles instantes que estavam junto.
-Charlie, Charlie! – Ela o chamou nervosamente tocando-o num dos ombros.
-Charlie, Charlie! – Ela repetiu numa tonalidade alta e sem que surtisse algum efeito.
Incontinente ela levou o dedo indicador e o médio para o pulso do escritor e procurou sentir na sensibilidade das pontas as pulsações das artérias de Charlie. Nada. Sem efeito.
Charlie não mais a ouvia e apenas ficou ali com o rosto cravado no peito como se estivesse em penitência. Era o ponto final para Charlie.
Charlie nunca mais beberia com ela e nem haveria outras quaisquer sextas feiras. Charlie simplesmente desistiu da vida e deixou sua alma voar o mais alto que pudesse. Ainda ela estava ali presente quando Nancy o abraçou ternamente e beijou-lhe o semblante. Houve um choro contido, mas não se ouviram lamentos e nem soluços. Só havia a dor de Nancy e um imensurável vazio, um desconforto que lhe sufocava o peito como e quando a gente perde um filho, um pai ou a mãe.
Era a dor de uma saudade imposta como se decreto. A dor de se ter consciência que naquele canto não haveria mais poesia e nem tristezas e muito mesmo algumas alegrias.
Enfim, partira o seu grande amigo, e a que nem ela soube decifrar todos os motivos de amá-lo tanto assim.
Copirraiti set2010
Véio China©
domingo, 17 de outubro de 2010
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