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segunda-feira, 10 de agosto de 2015

buceta cronica do escritor pop: roberto denser sobre seu aniversario

Então um dia alguém lê algo que você escreveu e diz nossa, que texto magnífico, foi você mesmo quem escreveu? Está verdadeiramente surpreso, pois pra ele escrever tem um quê de misticismo e ter alguém tão próximo que escreve com naturalidade, desenvoltura, fluidez não é apenas inesperado, é também fascinante. Daí você diz, lisonjeado pela surpresa e ofendido pela dúvida, ora, mas é claro que fui eu, quem mais teria sido, visto que eu aqui o exponho, visto que eu aqui solicito pareceres? Você é jovem e, dizem agora, talentoso, talvez até mesmo precoce, superdotado, um prodígio, dizem, e o motivo para afirmarem isso vem da soma de tua idade ao resultado de uma breve investigação: não houve uma influência externa que te causou esse ímpeto de pegar a caneta e rabiscar numa página em branco qualquer coisa que se aproxime de “Era uma vez um garoto que...”, pelo contrário: há em tua natureza introspectiva a presença perene, nascida contigo, de um cacoethes scribendi, uma coceira, uma ânsia por combinar palavras, criar universos, pegar o verbo, que era no princípio, trazê-lo para o teu domínio e transformá-lo em qualquer coisa que quiseres — com ele crias vidas, com ele brincas de deus —, o que fazes às vezes quando a musa senta em teu colo e sopra em teus ouvidos “vai”, ou mesmo quando tu é quem pega ela pelo pescoço e diz “vem”, obrigando-a a sentar em teu colo e ali permanecer. E você cresce com essa convicção, e aos 15 anos percebe que não é Rimbaud. Que você tem a fome de Rimbaud e a sede de Rimbaud, talvez até mesmo as disposições de espírito de Rimbaud, a aspiração mística de Rimbaud e até quem sabe a intuição e a vidência de Rimbaud, mas não, você não é Rimbaud e isso te frustra e você diz para si mesmo que ainda está em seu caminho, que é para não ter pressa, murmura algum cliché motivacional do tipo Caminante, no hay camino, pero... que nada mais é do que uma maneira bonita de dizer que devagar se vai ao longe, que para chegar só é preciso ir. E você vai, vai com tudo o que tem, acredita, superestima seu futuro, faz escolhas de vida que, você crê, te aproximarão de teu destino — você ainda acha que tem um —, mas que na prática só servem pra te levar ainda mais longe do lugar que — você não sabe se onde quer chegar ou se te pertence por alguma disposição pré-existencial. Então chegam os 20 anos, você então é imortal e mesmo que há muito você aceite que não é Rimbaud, algo em seu coração ainda acredita que há muito de Rimbaud em você, e por acreditar nisso e por ser imortal, você quer revolucionar o mundo, reorganizar as estrelas, gritar aos quatro cantos o brado do Deus-Furacão de modo a ensurdecer os que te ouvem (ou deveriam ouvir), já que é pra isso que eles estão ali. E você louva Dionísio, e você vive a vida como quem bebe o vinho, e entre orgias vazias de sentido você pensa em Nietzsche, no bigode de Nietzsche e na solidão de Nietzsche, na enxaqueca de Nietzsche e na loucura de Nietzsche, e em Nietzsche dançando nu no quarto de alguma pousada barata cantando uma música tribal e dizendo Eu sou Dionísio, Eu sou O Anticristo, Eu sou Zaratustra. E você pensa em seu colapso final, no cavalo e no açoite, em Raskolnikov e seu machado manchado de crime. Você pensa em você encarando o abismo, você pensa no abismo te encarando de volta. E volta a pensar em Nietzsche, Nietzsche sentado inerme numa cadeira, com um bigode que lhe cai ao queixo e os olhos enlouquecidos de quem viu o os milhões de infernos que queimam dentro de si. E você abre os olhos e percebe que está em seu quarto, cercado por livros, e que já não tem 20 anos, e sim 25, que continuou a acreditar, que continuou fazendo escolhas que pareciam certas, mas se mostraram erradas, que o futuro outrora superestimado finalmente se fizera presente e não se parecia em nada com o que tua imaginação arrogante de adolescente previra. Já não há crença em Destino, e é quando você percebe que não é Thomas Mann, e que não é imortal, e começa a pensar em Rimbaud com um misto de cinismo e desprezo, um desprezo que no fundo não é direcionado a Rimbaud, mas a você mesmo e ao que de fato, agora você sabe, vocês têm em comum. E algo deixa de queimar em você, o incêndio dos teus 20 anos se transforma numa faísca, e você já não grita DIONÍSIO!, você simplesmente murmura ‘apolo…’, você diz para si mesmo, Cresça, você diz que agora vai, que é preciso, que já não há tempo a perder. E, moderado, você vai, como quem caminha pela primeira vez, como quem anda no escuro, como quem dirige um carro que não é seu, como quem come em casa alheia, cheio de dedos, delicadezas. Mas algo no fundo de você, uma voz que você finge não reconhecer, murmura que por delicadeza ele — a voz — perdeu a vida, e diz ainda que antigamente, se bem se lembra, a sua vida era um festim onde se abriam todos os corações e corriam todos os vinhos. E depois de ouvir isso sabe-se lá por quantas vezes sendo gritado por uma voz que nada mais é que um murmúrio distante, você aceita o fato de que é a voz de Rimbaud, um Rimbaud jovem e poeta e dionisíaco e louco, e pederesta, e cheio de vida, de fome e de sede, e não de um Rimbaud bigodudo, traficante de armas e escravos, preocupado em juntar dinheiro, um Rimbaud que desistiu e que, talvez até por ter desistido, em breve morreria sem as pernas as quais outrora sonhara em não precisar. E você acorda de mais esse delírio, e você encara o seu rosto no espelho e você pensa, Meu Deus, tenho trinta anos. E você vê que está ficando calvo, que sua barba tem um ou outro pêlo grisalho, que suas costas estão se curvando, que seus olhos parecem os de um alucinado — e você sabe por quê, porque como Nietzsche você também ousou olhar para os seus infernos —, que o grau de sua miopia aumentou, e seus tendões estão estropiados por duas décadas de datilografia e digitação frenéticas. E você pensa em Henry Miller, Henry Miller em seus pijamas e seu roupão branco, Henry Miller rindo de tudo, rindo da desgraça dos escritores, da sua própria desgraça, do abismo e de todos nós. E você pensa em Henry Miller chamando a cidade de Nova York de puta, e Henry Miller mendigando centavos, e Henry Miller procurando emprego, e Henry Miller passando fome em Nova York nos anos 20, e em Paris nos anos 30. E você pensa em Henry Miller martelando uma velha máquina de escrever que ganhou de Anaïs Nin enquanto morre de fome em Paris, enquanto dorme entre piolhos e carrapatos em Paris, enquanto cata algo para comer nos lixos de Paris, enquanto diz para si mesmo que falhar como escritor seria falhar como homem. E você pensa em Henry Miller se comparando a Rimbaud, e nas ânsias de Miller e Rimbaud, e nas suas próprias ânsias, e você chora em silêncio, e você respira fundo uma, duas, três vezes, e você pensa que é uma pena que já não fume, do contrário você acenderia um cigarro agora mesmo, e você enxuga a lágrima silenciosa, e você sai para enfrentar mais um dia, e venha o que vier você enfrentará. Com coragem, amor, cinismo ou apatia você enfrentará. É só mais um dia, você diz para si, é só mais um aniversário, acrescenta. É só. ROBERTO DENSER

terça-feira, 4 de agosto de 2015