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terça-feira, 21 de agosto de 2007

Buceta Fuzilamento do poeta (conto de Beto Menezes)


O (fuzi)lamento do poetaNo dia do julgamento, meu infame destino me levou à praça onde os fuzis arrebentam com as transgressões dos poetas. Os dias logo passaram, mal me preparei. Hoje amanheci, fiz minha refeição sem muito gosto e toquei duas músicas de Bob Dylan com minha gaita imaginária. Dentro da minha cabeça de poeta, os versos de liberdade me angustiam em alto relevo sobre os outros pensamentos. Esses gárgulas entre anjos agâmicos querem se embrenhar por todo canto, por conta própria, e, inconseqüentes, romper à força do grito as cadeias construídas pelas armas. Os tempos mudaram. Antes, os poetas eram levados a público para terem a homenagem de que eles eram merecedores. E mesmo depois de mortos, continuavam vivos na mente e nos livros. Hoje, fogueiras públicas incendeiam essas lembranças. Livros, revistas e discos. Tudo é pretexto para essas orgias coletivas. Há sempre um contexto no mais puro dos textos, há um contexto que o condena ao fogo. As bibliotecas vazias tornaram-se fábricas de armas, as livrarias, depósitos. As prensas das gráficas vomitam sem intermitência propaganda governamental. Aos poetas, uma bala. Nada mais. Uma bala certeira no peito. Não há o pelotão, não há estardalhaço. Apenas um fuzil do mais qualificado oficial, do mais respeitado pelotão do exército da Guarda Republicana. Um fuzil basta. Apenas um roçar um pouco menos delicado no gatilho para espantar esses gárgulas que atormentam o poeta para o quinto dos infernos. A eficácia de uma bala ponto cinqüenta desmistifica a idéia utópica de que uma caneta ou um megafone podem romper as barreiras totalitárias. Quantos eu já vi cair em praça pública? Nessa última primavera, já perdi a conta. Mês passado colocaram dez poetizas em fila indiana. Trazidas do sul, estiveram presas desde o outono. Elas criaram um movimento, apregoaram o aborto, o divórcio, a renúncia aos maridos. Mantiveram a esperança por todo o inverno, eram de família respeitada.
Muitos esperavam a clemência do ditador, mas ela não veio. Serviu o exemplo de que até da própria carne pode ser cortada. As dez foram apresentadas no feriado da independência. Os seus nomes gritados em microfone, uma a uma, enfileiradas por idade. Na frente, a mais nova chorava, grávida de sete meses. Na platéia, o noivo segurava as lágrimas e os gárgulas para si. No fim da fila, a velha poetisa de tantos livros e medalhas mostrava na face cadavérica um sorriso que transpassava as mais jovens e atingia em cheio o fuzilador. Era um sorriso de vitória. "Mas que vitória, senhora?", deu-me da platéia o ímpeto de perguntar. Houve o silêncio quando o capitão deu o brado, saldou a república e ordenou. Em coice, o fuzil tentou punir o oficial que atirou. Dele, a bala seguiu na contramão do sorriso da mais experiente e furou a todas no peito, uma a uma, e na velha senhora cravou. As dez que apregoavam a revolução contra as armas com cravos na mão, mortas, caíram. Viu-se naquela tarde, a força do fuzil. Mas, nem o que atirou, nem o que ordenou o fuzilamento, sabiam. É que escorria, mais do que sangue, um rio de lirismo em meio a tanta brutalidade, se espalhando pela praça, marcando feito nódoa. Poetas são suicidas em potencial. Se tem o vendaval de paixão, eles estão lá, em uma romântica senhora tentação. Primeiros mártires, obcecados pelo desejo. Eu é que sei. Corria, quando criança, atrás dos raios para ver de perto as temidas elétricas árvores brancas que, enviadas pelos deuses, tangiam o gado para dentro das porteiras. O som do trovão, as nuvens em chuva e eu, criança, virando poeta. Querendo ser mais do que menino magro e tímido preso às porteiras do interior. Se eu pudesse, voaria para as nuvens do cerne dos raios. Insistiria para ver os anjos, os demônios, marcaria consulta com Deus. E com esses sonhos infantis, ia vivendo em paz, achando ser sabedor das coisas e de certa forma superior aos outros. Gárgula entre anjos agâmicos.
Ao meu redor todos olhavam para o céu e não viam o céu. Viam uma abóboda azul manchada de branco. Vi o céu quando apontei meus olhos, sobretudo, para dentro de mim. O poeta tem a tola fantasia de se achar imortal. Deve ser para isso que servem os fuzilamentos: mostrar aos outros que os poetas sangram. Na minha infância, o sangue que escorria era o dos arranhões dos tombos de bicicleta, da cabidela das galinhas e dos panos sujos de minha mãe. Eu era o poeta dos atos, um poeta em essência. Via tudo através de uma câmera de lente exclusiva. Procurava o caminho mais estranho para chegar ao lugar comum, meu caminho único. Só vim a escrever no papel muito mais tarde. Um bilhete para a moça que sempre encontrava ao atravessar a ponte, essa foi minha primeira poesia que escrevi. Olhei aquela mocinha de cabo a rabo. Descobri detalhes que nunca tinha percebido nas mulheres. Sonhava em claro, nas madrugadas, metaforizando no escuro do meu quarto, desenhando com estrelas o corpo dela. Comprei papel na venda, sentei e escrevi. Nas bonitas linhas que saíram, eu não estava ali. Não passei a limpo os rascunho das estrelas, nem os detalhes que nela percebi: belos dedos mindinhos tortos, delicada forma ligeira de morder os lábios quando passava por mim. Sobre essas coisas não escrevi. Medo de me expor. Medo de sua reação. Preferi escrever versos seguros, subornei os clássicos e em paráfrases, poetizei o que tinha certeza de que ela ia gostar. Assim não houve risco. Ela rendeu-se ao primeiro verso. Fui perverso comigo, sei, mas qual o apaixonado quer correr o risco? Naquele poema calculado, descobri em mim um verso sombrio que a todos satisfazia. E logo estava cheio de encomenda de poesia. Para a igreja: batizado, catecismo, crisma, casamento, missa de corpo presente. O prefeito me incumbia de textos para as festas: inauguração, feriado. Para os amigos, cartas de amor, principalmente. Todos, um dia, precisaram de uma carta de amor.
E quando a primeira bomba apontou no horizonte, vermelhando o céu antes do arrebol, vi que ao contrário de muitos outros, as minhas palavras seriam meu salvo-conduto para o negro dia que nascia. Me alistei. Escalei a hierarquia militar tão rapidamente que quando vi estava lá em cima. General do Exército Republicano. A escolha esmerada da palavra me fez bem-vindo em todas as rodas, em todos os salões do Governo que se formava. Hoje, sob as ordens do ditador, controlo todo o sul do país, e aqui na capital qualquer decisão deve passar por mim e só se for preciso deve chegar a ele. No começo turbulento da ditadura, protegi meus pais e todos os amigos que pude. Também usei meu poder para proteger jovens poetas incitados. Eles chegavam aos quartéis aos tantos. Nas torturas, bradavam versos enraivecidos: "Ah! Liberdade! O que ordenares farei!", "Até condenado a morte serei, meu amor!" Se eles soubessem o preço alto de rogar por mais forças a essa dama. Quem é o maior amante da liberdade senão o nosso ditador? Eu quase sempre conseguia uma maneira de livrá-los da pena capital, enviando-os a prisões distantes e até mesmo embarcando-os clandestinamente para o exterior. Outros, apesar de tudo, tinham o infame destino do fuzilamento. Com o congresso fechado e o supremo tribunal exonerado, as leis são feitas e executadas de maneira rápida. Portanto, todas as condenações sempre são legais como em qualquer democracia no mundo. E foi num desses julgamentos que recebi a ingrata missão de apontar um fuzil para um poeta. E não era um poeta qualquer, era o Poeta. Por mais de uma década ele se escondeu nas montanhas do norte, depois que voltou do exílio. Seus textos incitadores eram esperados com ansiedade. Suas palavras se espalhavam por todo o país em papéis mimeografados e por emails, repetidas vezes encaminhados. Atacavam em cheio a ordem estabelecida e estarreciam a confiança da população. Sua prisão acalmou as preocupações do ditador. E sua condenação me leva agora ao centro das atenções.
Com as medalhas alinhadas no uniforme engomando, eu estou aqui. Tenho em pé ao meu lado o fuzil limpo e verificado, escuto solemente os acordes do Hino Nacional. Esse som de trombetas dos trompetes sempre me deu a idéia exata de como os poetas mortos são saudados às portas do paraíso. Será que no paraíso dos poetas eles ainda precisam poetizar? Ou terão finalmente o descanso? Os gárgulas finalmente aceitarão a trégua? As trombetas nacionais se encerram e no microfone o nome do grande poeta é anunciado. Sem algemas, com dois oficiais armados de cada lado, surge na praça o poeta. Os longos cabelos castanhos encaracolados escorrem sobre a túnica de linho cru que mês passado no campo ainda era flor. Rugas na face imberbe. Não há sofrimento, tampouco frustração. Passos retos, nenhuma vontade de fugir. Passa por mim como se eu não existisse. Na verdade, para ele sou apenas um infante, um de tantos que perderam na infância o dom da poesia. E confiante, ele segue ao seu posto. Encara o ditador por segundos e continua a caminhar. Em pé, aquém da parede, espera pela bala final. Antes, três quartos de hora de um inflamado discurso do nosso ditador sobre a Democracia. Na platéia, palmas correligionárias da multidão que sustentava ensandecidamente cartazes com fotos do ditador. O público passou toda a tarde trocando cartões postais de fuzilamentos passados. Agora se acotovelam pela melhor posição para ver o próximo ato que será feito com maestria. E o maestro dessa orquestração sou eu. Com meu nome e meus títulos anunciados pelo mestre de cerimônias, pagaria todos os meus ordenados para estar bem longe, engraxando sapatos de sargentos aquartelado em alguma cidadezinha do interior. Mas estou e nunca fui ovacionado por tanta gente. Meu nome é chamado por milhares dessa torcida de sangue. Sou o centro das atenções como sempre sonhei, como sempre esperei por todos esses anos. Levanto-me e caminho até a posição de fuzilador. Doze metros me separam do poeta. Do púlpito, o ditador me saúda.
Eu deveria estar honrado com tão poderosa saudação. O que gostaria mais? Sinceramente, por mim, preferiria estar do outro lado do cano. Gostaria de ser o poeta a ser fuzilado. Trocaria todas as medalhas que estoco em estojos finos por uma bala certeira no peito. Uma única. Para derrubar tão grande covardia acumulada em um único homem. Ah, meu querido ditador! Essa bala poderia ser para você. Todos conhecem a minha notável rapidez em empunhar uma arma. E a acurada mira que difere alfinetes de agulhas. Me dê dois segundos e ele você já era. Um eterno ditador que por todo esse tempo caftinou a senhora liberdade. Um ditador que, firmado em ombros de grandes libertários, aprisionou uma nação por três décadas. Dei-me uma bala e nada mais. Conduzirei ele, então, à terra dos perversos onde os versos do mais transgressor dos poetas não ousou a penetrar. Uma bala entre os olhos, no centro da testa. Uma das milhares de balas fabricadas por meu pai na biblioteca desativada da minha cidade natal. O ditador caído será o fim de uma era. Depois dessa queda, o que se sucede a mim é mero detalhe. Detalhe que não me importa mais. Todavia, entre pensar e fazer há um enorme fosso. Da mesma grandeza do fosso que divide o que eu sou do que eu nasci para ser. E eu deveria estar junto àquela parede, olhando com esse sorriso de poeta para o público que me fuzila. Poetas não devem pensar em hierarquia, em saudações respeitosas a autoridades. Poetas não devem estar presos a soldos. Poetas não pensam em planos de aposentadoria. Pois, como eu já disse, poetas são suicidas em potencial. Agora, aqui, com arma em posição de tiro, relembro das poesias que não fiz, dos filmes que protagonizei mas nunca entraram em cartaz. Eu devia ter seguido as badaladas das reboladas das morenas, ter fugido, curtido o exílio, ter tentado o Nobel. Hoje seria conhecido pela trilogias das trilogias das trilogias poéticas que, em milhões de tiragens, divulguei.
Deixaria todos esses bárbaros e suas tiranias e viveria esquecendo minha terra, arremessando os jornais em zonas abissais. Covarde como sempre, como sempre fui. E em covardia, aponto o fuzil para o poeta. Da mira redonda, vejo seu sorriso em relevo. Meu dedo coça no gatilho. E agora não há arrimo. Foi dada a ordem. Devo atirar. Mas não atiro. O dedo indicador rígido evita o gatilho. Repetem a ordem. Eu não atiro. Permaneço imóvel. Eu que sempre tive o dom da escolha das palavras, dois pares delas agora me travam a mente e o corpo: cento e oitenta graus. Retornar. Meia volta. Volver. O ditador e o publico esperam. Todos sempre esperam o melhor de mim, mas nunca esperam uma surpresa. Sempre faço a coisa certa, da melhor maneira, devo salientar. Mas nunca surpreendo ninguém. Quando subornei os clássicos, firmei um pacto de segui-los, de copiá-los para sempre. E dos clássicos, não há mais surpresas. Como não há surpresas nos filmes que são reprisados sem fim nos canais de TV estatais. Nunca serei clássico, no máximo estamparei o mais valioso dos cartões postais: o do fuzilamento do grande poeta. Com meu fuzil limpo e medalhas alinhadas no peito. Meia volta, volver. Giro a arma e a aponto para o meu peito. Murmúrios e rebuliços ao meu redor. Não espero uma nova ordem, atiro. Não lembro de que clássico copiei. Só sei que nessa hora nenhum freio me veio. Apenas atirei. Assim devem ser os poetas, atirar primeiro e depois ver os estragos não calculados de sua ação. Deixo minha pensão para os meus pais. Que minha mulher me compreenda e que perdoe por nunca ter feito a carta de amor que ela merecia. Sigo agora para as portas do paraíso dos poetas. Quem sabe esse meu último arrependimento me redima. Antes do amanhecer estarei lá, pedirei clemência ao porteiro. Que eu seja aceito juntos aos poetas que sempre admirei: os poetas de sangue e os poetas de mente. E não importa se serei saudado com as mesmas honras dos profetas ou escarnecido como os ladrões de bicicletas. ----------------------------------------------------------------------------------Olha aí pessoal, o décimo conto da série de um parágrafo só. Gostaria de saber a opinião de vcs.

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