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domingo, 2 de fevereiro de 2014

+ um conto

O Inverno dos Lagartos Os dois velhos imigrantes permanecem estirados nas espreguiçadeiras da varanda por toda a tarde, um em frente ao outro, sob a luz baça do inverno, cujo sol desce, filtrado de leve pela parreira do caramanchão. Dir-se-ia dois lagartos, de pele vermelha, a obter assim o calor que lhes falta. Chegaram há poucas horas do sepultamento do padre e ainda se ressentem da poeira acumulada em suas casacas durante o trajeto e do desconforto das montarias. Os dois estão em uma atitude repousada e a voz de cada um lhes brota, na penumbra, sem inflexões. Bebem vinho e não desejam se mexer. Apenas aguardam o tempo derramar-se na ampulheta, imersos em reminiscências. - Foi em vinte e sete...- diz um deles. - Não, não. Foi em fins de vinte oito ou início de vinte nove – retruca o outro. - Ele apareceu por aqui no mesmo verão em que um negro novo foi mordido por uma jararaca no braço direito. Me lembro muito bem daquela sotaina puída, sob o vento de uma tarde quente. Ao chegar, nada possuía, mas ao morrer... Finou-se fazendeiro, como nós. - A custa de novena e promessa de missa... Na epidemia. - Pois. - Foi em vinte e nove a grande febre... - Ano dos órfãos... - Sim. Os órfãos...como os havia naquele tempo... Lembra-te de Marie Vodoz, quase menina e já casada à força com um português? - Ele a tutelou junto ao juiz, um olho nas terras do finado pai, outro nas ancas da menina. - Que fugiu dos maus tratos. - Pois é. Um beberrão que espancava a mulher ao chegar da venda, todo dia. Acabou terminado na cancela da fazenda. Dois homens, dizem que por encomenda, tocaiaram ele meia légua adiante, ali onde uma garapa até hoje faz sombra na estrada. - Sei. Mal ferido na barriga, ainda esporeou no desvario da morte, debruçado no pescoço do cavalo. Até que o animal estacou na porteira e assim ficou...e o acharam inda vivo. - Lembro como se fosse hoje. O português escorregou da sela e se arrastou na areia... Morreu abraçado ao moirão, o embornal com duas garrafas de aguardente. A voz de ambos continua calma e inflexivel como um solilóquio, a evocar as extravagantes aparições de outras eras, homens e mulheres cujas ações, erros ou acertos haviam sido expurgados pelo tempo ou pela morte. Um deles ordena que lhes tragam mais vinho, talvez deseje a embriaguez e o esquecimento. Há um resquício de calor sob o sol declinante, ainda que à sombra, um frio insidioso infiltre as articulações. Os dois homens permanecem como que entorpecidos. Estabelecem prolongadas pausas, não premeditadas, enredados pelo emaranhado sufocante de seus próprios remorsos, até que retomam o discurso em meio as palavras quase soltas, mas que para um e outro encontram significado. Elas surgem como verbigerações solitárias em meio ao canto penetrante das cigarras e o cheiro onipresente da glicínia que a esposa de um deles plantara antes de morrer. - Falando nos órfãos, o filho do finado Balmat estava lá. Não viste? - No enterro, queres dizer. Era cria do padre. - Sim. Sei. Mas é surpreendente, já que na infância o padre o castigava mais que a própria mula. - Depois o obrigava a orações suplementares. - Tornou-se um homem rico, dizem, e tem uma única filha casada com um francês... - Tribouillet. Sócio de Meyrat. - Meyrat, o bom Meyrat. A velha raposa que morreu na epidemia... - E que teve um filho com Marianne Bonnet, outra das órfãs, que partiu para o Rio em seguida. - Irmã de Françoise Bonnet, casada com o dinamarquês Exner. - Sim, sim... retornou anos depois casada com Schmidt, fazendeiro na Penna. Ao ficar viúva reconheceu o filho, que agora se chama Schmidt, sem nunca ter sido. Ele vive de rendas. Vendeu as terras do suposto pai. - Como se diz por aqui, foi tico-tico que criou godero. Os dois sorriram pela primeira vez. - Mas, na verdade, compadre, quase nada tem importância neste mundo de Deus... estamos vivos, é o que vale. Perdi um filho para a febre e outro nesta maldita guerra, o que tive com Tereza, a parda que alforriei, ele não tinha trinta anos. - A guerra não escolhe idade, compadre. - A guerra não escolhe... Um deles movimenta-se na cadeira. - A morte de um homem, quando estamos em nossa idade, nos obriga a pensar. Até onde iremos, compadre? Quanto nos resta? – diz, com uma ponta de melancolia, levantando a taça e observando a coloração do vinho contra o que restara de luz. - Tempo suficiente para sorvermos mais esta garrafa. – graceja o outro. - Quero dizer...Quantos de nós...dos que viemos, ainda estarão sob o sol? - Duas centenas talvez. Um pouco mais ou menos. Éramos mais de dois mil... -Dispersamo-nos pela província, morremos por doenças, ressentimo-nos mutuamente, padecemos nas guerras. Deixamos nossos pais, irmãos e irmãs, desconhecemos sobrinhos que já não falam a mesma língua de nossos filhos, plantamos café e escravizamos negros...pode ser esta a síntese de nossa existência. Anoitece. Por vezes os dois guardam silêncio, como se as vozes se tivessem ido, absorvidas por alguma dobra de passado, como se o sentido das imagens periclitasse na traiçoeira borda das reminiscências imprecisas. Mas logo retomam adiante, como uma estrada em que é preciso caminhar. Um dos filhos de um deles, que agora administra a fazenda, mandou que acendessem as lâmpadas de óleo acima daquelas duas cabeças devastadas pelas recordações, sobre as quais insetos iriam bruxolear, indiferentes. Abaixo, do terreiro, os alcançava o canto dos escravos que se recolhiam à senzala, após mais um dia de trabalho rigorosamente igual. ESRITOR: HEnrique BON

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