O Sonho de Minnie Mouse
A
CAPINHA IMPERMEÁVEL COR-DE-ROSA, salpicada de sangue e empoada de
terra, abrigava o corpo imóvel de uma garotinha negra: cabelos crespos
presos no laço de uma trança desfeita, grãos de areia e formigas saúvas
maquiando as pálpebras semiabertas; a boca estourada dum murro.
Ao
lado do corpo: dois dentes de leite, catarro, sangue, esperma, e uma
lancheira da Barbie. Dentro da lancheira, uma garrafinha de suco de maçã
e um sanduíche de pão com salame enrolado cuidadosamente em guardanapos
duplos.
Mais além: a mochila jogada de
qualquer jeito, intocada em seu interior, abrigo de um caderninho de
capa mole, de uma bolsa cheia de lápis de pintar.
A capinha impermeável cor-de-rosa já não possui razão de vestir, a chuva se foi há horas.
Ao lado do corpo: mais formigas se aproximam.
Mais além: a mochila permanece jogada de qualquer jeito.
O
lugar é ermo, coberto de mato, ninguém encontrará o corpo a tempo de
lhe dar um velório. Talvez nunca encontrem. Nunca, a não ser que o homem
alto, aquele homem alto que agora se banha, resolva confessar o que
fez. E onde fez.
Isso, porém, não vai
acontecer. Eis o que vai: o corpo da garota apodrecerá mais rápido que o
normal em virtude de estar ao ar livre. Bactérias nascidas e criadas na
floresta de seu próprio organismo, insetos vindos do exterior e
verminosidades necrófagas ajudarão no processo de decomposição do corpo.
Gases explodirão em seu estômago.
Cabelos e unhas serão as únicas coisas nela que continuarão a crescer.
***

Emily
adorava poucas coisas na vida: além da família, talvez apenas Minnie
Mouse, Barbie e leite com Nescau fossem dignas de citação.
Identificava-se, porém, muito mais com a Minnie que com a Barbie, talvez
por esta representar o antropo-ideal estético branco enquanto aquela
nada, além de uma menininha meiga, representava para Emily, uma garota
que jamais admitiria a natureza roedora de sua pequena deidade.
Emily
em muito se percebia diferente daquela pequena fada-boneca: loira,
alta, magra, com cabelos sedosos de fios dourados, nariz afilado,
olhares azuis (ou verdes? Castanhos certamente não eram!) e toda uma
lista de adjetivos (Barbie também era rica, vestia roupas bacanas,
andava em carros esportivos conversíveis e passava as férias na
Califórnia — ou morava lá? Para Emily era tudo a mesma coisa).
A
Minnie, por sua vez e exatamente como Emily, para começar, não era uma
pequena mulher, mas uma grande criança. Minnie usava vestidos
cor-de-rosa com bolinhas brancas, e não parecia ter nada de sofisticado o
suficiente para estar além da compreensão de Emily, exceto talvez por
Mickey, que dava muito trabalho e a quem Emily, se fosse sua namorada,
já teria dado um pé na bunda.
Em seus devaneios,
brincava de ser Minnie. Não tinha amigas e o irmão já entrara na idade
em que brincar nada mais era que um termo merecedor de desprezo e
negação, portanto brincava só; e quando brincava, era Minnie.
— Eu sou a senhora Minnie Mouse!
E assim era a senhora Minnie Mouse: uma criança pobre ma non troppo,
bastante imaginativa e enérgica que aprendeu a ir-e-vir para/da escola
apenas um mês antes de ser avistada e cobiçada por uma espécie qualquer
de maníaco que quando excitado sexualmente só consegue voltar à razão
depois de ejacular seu esperma ralo no cadáver sujo de uma moça
qualquer. Mesmo a moça que é criança, que sequer menstruou, em cujo
raciocínio e fala ainda existe a inocência das variações metatéticas de
quem ainda nem aprendeu direito a falar.
Minnie
Mouse morreu com um sonho que jamais iremos conhecer, mas que sempre
poderemos supor: talvez fosse a garota que quer ser modelo, quem sabe
doutora em potencial, por que não dizer dançarina, atriz, bailarina, do
lar, um trabalho informal? Nunca se saberá, é verdade, mas havia um
leque de perspectivas então podemos trabalhar as mais variadas
possibilidades visto que Minnie Mouse era energia e talento reencarnados
num ossudo corpinho.
O destino de Minnie Mouse,
contudo, foi exatamente aquele para qual nenhuma das perspectivas
apontava: quatro ossos quebrados, dois dentes partidos, um ventre
rasgado e a dor indescritível de quem aguenta aquilo que não se pode
suportar: o peso de cento e dez quilos sobre o corpo que só faltava
voar, o membro encorpado de monstro a rasgar tudo o que poderia vir a
ser fruto de algum prazer menos sórdido, num futuro que pouco tivesse de
mórbido, e que não foi o caso de Minnie Mouse.
Minnie
Mouse morreu e se metamorfoseou em comida de verme. Destino que Deus
lhe escolheu? Não se sabe. Sabe-se apenas do estuprador: já viveu seus
quarenta, goza a perfeita saúde de quem nasceu para o terror e, isso é
certeza, fará outras vítimas.
O sonho de Minnie Mouse permanecerá um mistério irrealizável.
By roberto Denser
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