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segunda-feira, 1 de julho de 2013

Buceta Conto do escritor pop: Roberto Denser

O Sonho de Minnie Mouse

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A CAPINHA IMPERMEÁVEL COR-DE-ROSA, salpicada de sangue e empoada de terra, abrigava o corpo imóvel de uma garotinha negra: cabelos crespos presos no laço de uma trança desfeita, grãos de areia e formigas saúvas maquiando as pálpebras semiabertas; a boca estourada dum murro.
Ao lado do corpo: dois dentes de leite, catarro, sangue, esperma, e uma lancheira da Barbie. Dentro da lancheira, uma garrafinha de suco de maçã e um sanduíche de pão com salame enrolado cuidadosamente em guardanapos duplos.
Mais além: a mochila jogada de qualquer jeito, intocada em seu interior, abrigo de um caderninho de capa mole, de uma bolsa cheia de lápis de pintar.
A capinha impermeável cor-de-rosa já não possui razão de vestir, a chuva se foi há horas.
Ao lado do corpo: mais formigas se aproximam.
Mais além: a mochila permanece jogada de qualquer jeito.
O lugar é ermo, coberto de mato, ninguém encontrará o corpo a tempo de lhe dar um velório. Talvez nunca encontrem. Nunca, a não ser que o homem alto, aquele homem alto que agora se banha, resolva confessar o que fez. E onde fez.
Isso, porém, não vai acontecer. Eis o que vai: o corpo da garota apodrecerá mais rápido que o normal em virtude de estar ao ar livre. Bactérias nascidas e criadas na floresta de seu próprio organismo, insetos vindos do exterior e verminosidades necrófagas ajudarão no processo de decomposição do corpo.
Gases explodirão em seu estômago.
Cabelos e unhas serão as únicas coisas nela que continuarão a crescer.
***
mmouse3Seu nome era Emily, mas seu irmão mais velho lhe chamava Ba-boo, parodiando a forma como ela pronunciara “Barbie” pela primeira vez. Ela não se importava, gostava do irmão e nada que ele fizesse iria mudar isso.
Emily adorava poucas coisas na vida: além da família, talvez apenas Minnie Mouse, Barbie e leite com Nescau fossem dignas de citação. Identificava-se, porém, muito mais com a Minnie que com a Barbie, talvez por esta representar o antropo-ideal estético branco enquanto aquela nada, além de uma menininha meiga, representava para Emily, uma garota que jamais admitiria a natureza roedora de sua pequena deidade.
Emily em muito se percebia diferente daquela pequena fada-boneca: loira, alta, magra, com cabelos sedosos de fios dourados, nariz afilado, olhares azuis (ou verdes? Castanhos certamente não eram!) e toda uma lista de adjetivos (Barbie também era rica, vestia roupas bacanas, andava em carros esportivos conversíveis e passava as férias na Califórnia — ou morava lá? Para Emily era tudo a mesma coisa).
A Minnie, por sua vez e exatamente como Emily, para começar, não era uma pequena mulher, mas uma grande criança. Minnie usava vestidos cor-de-rosa com bolinhas brancas, e não parecia ter nada de sofisticado o suficiente para estar além da compreensão de Emily, exceto talvez por Mickey, que dava muito trabalho e a quem Emily, se fosse sua namorada, já teria dado um pé na bunda.
Em seus devaneios, brincava de ser Minnie. Não tinha amigas e o irmão já entrara na idade em que brincar nada mais era que um termo merecedor de desprezo e negação, portanto brincava só; e quando brincava, era Minnie.
— Eu sou a senhora Minnie Mouse!
E assim era a senhora Minnie Mouse: uma criança pobre ma non troppo, bastante imaginativa e enérgica que aprendeu a ir-e-vir para/da escola apenas um mês antes de ser avistada e cobiçada por uma espécie qualquer de maníaco que quando excitado sexualmente só consegue voltar à razão depois de ejacular seu esperma ralo no cadáver sujo de uma moça qualquer. Mesmo a moça que é criança, que sequer menstruou, em cujo raciocínio e fala ainda existe a inocência das variações metatéticas de quem ainda nem aprendeu direito a falar.
Minnie Mouse morreu com um sonho que jamais iremos conhecer, mas que sempre poderemos supor: talvez fosse a garota que quer ser modelo, quem sabe doutora em potencial, por que não dizer dançarina, atriz, bailarina, do lar, um trabalho informal? Nunca se saberá, é verdade, mas havia um leque de perspectivas então podemos trabalhar as mais variadas possibilidades visto que Minnie Mouse era energia e talento reencarnados num ossudo corpinho.
O destino de Minnie Mouse, contudo, foi exatamente aquele para qual nenhuma das perspectivas apontava: quatro ossos quebrados, dois dentes partidos, um ventre rasgado e a dor indescritível de quem aguenta aquilo que não se pode suportar: o peso de cento e dez quilos sobre o corpo que só faltava voar, o membro encorpado de monstro a rasgar tudo o que poderia vir a ser fruto de algum prazer menos sórdido, num futuro que pouco tivesse de mórbido, e que não foi o caso de Minnie Mouse.
Minnie Mouse morreu e se metamorfoseou em comida de verme. Destino que Deus lhe escolheu? Não se sabe. Sabe-se apenas do estuprador: já viveu seus quarenta, goza a perfeita saúde de quem nasceu para o terror e, isso é certeza, fará outras vítimas.
O sonho de Minnie Mouse permanecerá um mistério irrealizável.

By roberto Denser

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